Frederico Guilherme Graeff
uma prosa em verso científico
Claudia Jurberg

Araraquara é o berço de Frederico Guilherme Graeff, que nasceu nesse interior paulista no dia 6 de maio de 1940, tendo lá residido até quase os 18 anos de idade.

Filho de Herculano Graeff, médico carioca, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, adotou São Paulo quando para Pinhal se mudou em 1930, tendo participado da revolução constitucionalista de 1932. De lá, rumou para Araraquara, onde conheceu a futura esposa Haydée Bonilha, educadora sanitária do Posto de Saúde pública da cidade.

Graeff sempre estudou em escolas públicas que, então, eram as melhores em qualidade de ensino, além de propiciarem o convívio entre estudantes provenientes de todos os extratos sociais. A única exceção foi no último ano do curso colegial. Sendo filho único, os pais sempre encorajaram a interação com outras crianças, incluindo transformar o corredor da garagem em campo de futebol, para onde se dirigiam muitos colegas do grupo escolar após as aulas, para disputar animadas “peladas”.

O apreço dos pais por sua formação intelectual propiciou-lhe fartura de livros no lar e professores particulares onde havia deficiências na escola. Como resultado, ingressou na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), da Universidade de São Paulo, em 1958.

Além da ciência, durante essa fase, nutria ainda grande interesse pela música, tendo aulas de piano por alguns anos. Suas preferências musicais eram erudita, tanto orquestral como lírica. Nesse período ainda mergulhou fundo na literatura clássica. Foi leitor das obras completas de Sheakespeare, em português. Facilmente perceptível, o incentivo cultural não faltava no seio familiar. Corroborando nesse painel, o avô orgulhoso lhe presenteou com as obras completas de Sigmund Freud, traduzidas em espanhol. Admirado pelos encantos da literatura, Graeff buscou ainda sorver os ensinamentos dos filósofos clássicos e modernos.

Como a FMRP havia sido fundada há pouco tempo, por Zeferino Vaz, trazia perspectivas novas para o ensino médico. Essencialmente, valorizava a integração entre ensino e pesquisa, originária da tradição germânica transformada nos Estados Unidos. Por isso, a Fundação Rockefeller apoiou fortemente sua implantação. Desde as primeiras visitas, os alunos adentravam nos laboratórios onde se fazia pesquisa original. Este foi, para Graeff, o primeiro contato com o método científico.

A atração pela neurociência começou nas excelentes aulas de neuroanatomia ministradas pelo renomado histologista belga, Lucien Lison. Mas foi a neurofisiologia ensinada pelos professores argentinos, Miguel Rolando Covian, um importante referencial em sua vida, Maria Carmelo Lico e Ricardo Marseillan, que despertaram a curiosidade sobre como o cérebro regula o comportamento e as funções psicológicas.

Curiosamente, Zeferino Vaz também prezava a Psicanálise. Por isso, convidou o psicanalista chileno Hernan Davanzo Corte para chefiar o setor de Psiquiatria. O choque paradigmático entre a abordagem analítica e o modelo neopositivista da ciência natural causava ansiedade e até perturbações da disciplina entre os estudantes e para Graeff foi, sem dúvida, uma experiência estimulante.

Ao mesmo tempo, havia a propensão para a pesquisa fundamental, estimulada pela amizade com João Garcia Leme, colega da turma precedente, que desde cedo optara pelo laboratório. No Departamento de Farmacologia, onde trabalhava Garcia Leme, despontava um dos maiores cientistas da história brasileira, Maurício Oscar da Rocha e Silva. Por intermédio de Garcia Leme, Graeff teve permissão para fazer iniciação científica no Departamento. Como não existia a pós-graduação formal no país, e havia necessidade de constituir o novo Departamento, Rocha e Silva procurava atrair estudantes de Medicina para a pesquisa.

O primeiro trabalho foi realizado sob orientação do próprio Garcia Leme, e já versava sobre serotonina (5-HT) e comportamento. O seu primeiro artigo contou com sete versões que iam se aprimorando. Para surpresa, foi aceito. Nem Rocha e Silva, nem Garcia Leme trabalhavam com drogas e comportamento. Quem mais se aproximava deste campo era Alexandre Pinto Corrado, que orientou Graeff em seu doutorado. Com ele, aprendeu técnicas de eletroencefalografia em gatos e coelhos.

Naquela época, pouco avançou no estudo experimental do comportamento em Ribeirão Preto. Assim, ainda durante o curso médico, havia estagiado no Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo, dirigido por Carolina Bori. Havia forte influência do comportamentalismo de Burrhus Frederick Skinner e, assim, lá aprendeu a treinar ratos utilizando diversos esquemas de reforço. Fiel a suas tendências, sua atenção foi atraída pelo modelo de punição ou de conflito, em que uma resposta do animal é mantida por recompensa e, simultaneamente, suprimida pela apresentação de estímulo nocivo, geralmente, um choque elétrico nas patas. Parecia ter algo a ver com a ansiedade.

Tendo sido contratado no mesmo ano do doutorado, início de 1966, começou a formular planos para estagiar no exterior. Por sugestão do psicólogo norte-americano Frederick S. Keller, um ex-colaborador de Skinner, que mantinha intenso intercâmbio com o grupo de Carolina Bori, foi trabalhar no Setor de Farmacologia Comportamental do Departamento de Farmacologia da Universidade de Harvard, em Boston.

Esse estágio, durante os anos de 1968 e 1969, foi experiência marcante. Em 1964, casou-se com Heloísa E. G. de Oliveira, por coincidência no mesmo ano do “casamento” intelectual com a serotonina. Segundo ele, ambos os amores perduram até hoje. Em 1968, a filha Eneida tinha três anos de idade, e Carlos Frederico, apenas seis meses. No meio do estágio chegou Isabela, que veio nascer no Brasil. A mudanças drásticas vieram sucessivamente: de uma cidade provinciana de 120.000 habitantes para uma metrópole de dois milhões de almas. Isto somado a mudanças climáticas que variaram de mais 40 °C para menos 20 °C, sem falar no vento; acrescido a uma acolhida fria para não dizer gelada a um sul-americano resultaram num tempo nebuloso com dificuldades de adaptação. Para completar o panorama, após seis meses de trabalho intenso não vislumbrava nenhum resultado publicável para justificar a Bolsa de Estudos que recebia do National Institute of Health. Seu consolo foi verificar que o mesmo acontecia com outros pós-doutorandos. Foi, então, que decidiu tentar alternativas desesperadas.

Uma delas foi injetar metisergida, droga que se acreditava útil no tratamento da agitação maníaca, em um grupo de pombos que haviam sido treinados em um esquema de punição, por um colega alemão que retornara a seu país. Neles, havia medido o efeito anticonflito de vários ansiolíticos benzodiazepínicos. Como as sessões experimentais eram diárias, Graeff e seu colaborador Roanld I. Schoenfeld se revezavam nos fins de semana. Foi assim que, num sábado, se surpreendeu com o ritmo elevado de bicadas de um pombo injetado com a droga. Quando viu o registro cumulativo ficou impressionado. Havia um efeito anticonflito de magnitude igual ao do mais potente benzodiazepínico. Confessa que teve a sensação de eureka, e a intuição de que as dificuldades haviam terminado. Aprendeu depois que este acontecimento se chama serendipity.

O próximo passo era saber o mecanismo da ação anticonflito. Consultando a literatura, verificou que a metisergida bloqueia receptores de serotonina. Por isso, testaram outro antagonista, o ácido bromolisérgico, análogo não alucinogênico do LDS-25. Este composto teve o mesmo efeito que a metisergida. Em contrapartida, verificaram que um agonista serotonérgico acentuava a supressão das bicadas determinada pela punição. Estes resultados foram publicados no Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics em 1970, implicando mecanismos triptaminérgicos na punição, que era o principal modelo animal de ansiedade. Com base neles, bem como em outras evidências, Larry Stein e colaboradores elaboraram o primeiro modelo teórico da participação da 5-HT na ansiedade. Eles propuseram que as vias ascendentes que liberam 5-HT no prosencéfalo, bem como na matéria cinzenta periaquedutal (MCP) do mesencéfalo promoviam a supressão de respostas determinada pela punição, portanto aumentavam a ansiedade.

Apesar da difícil decisão, resolveu voltar ao Brasil em 1969. A esposa, que havia retornado aos Estados Unidos, relatava experiências de medo em face da repressão política que atingia seus parentes próximos. Seu ex-professor de Clínica Médica, Hélio Lourenço de Oliveira, por quem nutria grande admiração, havia sido cassado, quando era Reitor da USP. Por outro lado, ponderava sobre os papéis que lhe caberiam em qualquer uma das decisões. Como diz “seria cabeça de rato ou cauda de leão?” Mas, a saudade dos amigos e parentes foi mais forte e a família retornou.

Durante os dez anos seguintes, ampliou o laboratório de Psicofarmacologia, no Departamento de Farmacologia da FMRP e passou a orientar alunos de pós-graduação. Nos primeiros anos, deu continuidade às pesquisas sobre o efeito de drogas no comportamento operante. Porém, queria incorporar ao trabalho intervenções diretas no cérebro. A oportunidade surgiu quando Miguel Covian solicitou-lhe que orientasse Luiz Carlos Schenberg, que havia aprendido técnicas de estimulação elétrica intracerebral em ratos acordados. Decidiram, então, testar o postulado da hipótese de Stein e colaboradoras referente à MCP. A estimulação da MCP dorsal (MCPD) tinha propriedades aversivas, e os ratos logo aprendiam a desligar a corrente elétrica acionando uma alavanca. Segundo a hipótese que examinavam, a 5-HT devia aumentar a aversão. Para surpresa do grupo, foi a ciproeptadina, um antagonista da 5-HT, que facilitou o comportamento de desligar. Este foi o primeiro de uma série de resultados, que os levaram a reformular o modelo original, e propor que a 5-HT desempenha um duplo papel sobre a ansiedade, facilitando-a no prosencéfalo, mas inibindo-a na MCPD.

Durante os anos de 1978 e 1979 foi trabalhar na Inglaterra como Professor Visitante no Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Oxford. O objetivo era trabalhar com Jeffrey A. Gray, que estava elaborando um modelo neuropsicológico da ansiedade que se tornou muito conhecido. A estrutura crítica era o sistema septo-hipocampal, com o qual havia se comprometido a trabalhar. Porém, devido à flexibilidade de Jeffrey Gray pode incluir a MCPD em um dos experimentos que realizou, mostrando que esta última e o sistema septo-hipocampal se somavam para inibir o comportamento punido.

O estágio na Inglaterra foi muito enriquecedor tanto na vida pessoal como profissional. No ambiente de trabalho, Graeff confessa que lhe impressionou o senso de justiça, a avaliação objetiva do mérito de cada pessoa, e a confiabilidade dos acordos estabelecidos, sem falar do horário, tendo se identificado bastante com o estilo de pesquisa inglês. Para ele, foi uma honra e prazer conquistar a amizade pessoal de Jeffrey Gray, um dos psicólogos mais destacados da história da Grã Bretanha, cuja personalidade multifacetada e o calor humano conquistaram sua admiração. Seu recente falecimento, em 2004, muito o comoveu.

Ao retornarem ao país, o Brasil estava a caminho da abertura política e a família Graeff partilhou o vôo, proveniente de Lisboa, com o exilado Leonel Brizola. Na universidade o clima era mais leve, encorajando o trabalho acadêmico. Sua intuição indicava que a MCP devia ser importante na ansiedade, direcionando os esforços do laboratório para esse estudo. A hipótese de que a 5-HT inibe a aversão na MCPD foi fortalecida por uma série de resultados obtidos com a injeção intracerebral de drogas na mesma região, bem como nos núcleos da rafe.

Um salto conceitual foi dado quando se estabeleceu relação entre a MCPD e o transtorno de pânico. A sugestão inspirou-se em comentário do psiquiatra Valentim Gentil, que após uma apresentação que Graeff fez em 1987 no Instituto de Psiquiatria da USP chamou a atenção para a extrema semelhança entre os efeitos da estimulação da MCP em pacientes, relatados por grupo de neurocirurgiões norte-americano, e as manifestações do ataque de pânico.

Nesta época, já fazia um ano que trabalhava no Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP, onde se tornara Professor Titular. A sua incumbência era a de liderar o Setor de Psicobiologia, estabelecendo referenciais elevados de pesquisa e consolidando o curso de pós-graduação.

A ligação entre MCPD e pânico foi formalizada em artigo teórico publicado no ano de 1991, em colaboração com o psiquiatra britânico John Francis William Deakin. Nele, Deakin e Graeff propuseram que a 5-HT facilitava a ansiedade atuando na amídala, porém inibia o pânico na MCPD. A partir de então, numerosos experimentos vêm sendo realizados para verificá-la. Os principais testes foram realizados utilizando-se um modelo animal, denominado labirinto em T-elevado, que foi criado para gerar duas tarefas no mesmo rato, uma representativa da ansiedade, e outra, do pânico. Além disso, utilizaram dois testes de ansiedade experimental humana, a resposta condicionada da condutância da pele e a simulação do falar em público, sendo o primeiro representativo da ansiedade, e o segundo do pânico. Uma revisão dos resultados obtidos foi publicada, em 2004, na Neuroscience and Biobehavioral Reviews. A grande maioria das evidências até agora obtidas concorda com as predições baseadas na referida hipótese do duplo papel da 5-HT.

Paralelamente à pesquisa científica, Graeff ainda se dedica à educação científica das novas gerações. Nesse sentido, redige obras didáticas, que se iniciaram com a monografia “Drogas psicotrópicas e seu modo de ação” publicada pela primeira vez em 1984 (EPU, EDUSP, CNPq). Também escreveu, em colaboração com Francisco Guimarães e Marcus Lira Brandão, sobre “Psicofarmacologia” e “Neurobiologia das doenças mentais”.

Graeff ainda deu uma contribuição significativa à implantação da pós-graduação brasileira e à conseqüente disseminação de núcleos emergentes de pesquisa. Consciente da responsabilidade que lhe cabia, procurou associar pesquisa com a formação de mestres e doutores, visando capacitá-los a se tornarem independentes no futuro. Com isto, foi o responsável pela orientação de 17 mestres e 27 doutores, muitos dos quais se tornaram líderes de novos grupos de pesquisa, distribuídos em diferentes regiões do país. Aos alunos imputa gratidão pelas inestimáveis colaborações, bem como a amizade e afeto. Graeff ainda salienta a valiosa colaboração, de mais de vinte anos, do técnico do Departamento de Farmacologia, José Carlos de Aguiar. Para ele, a pesquisa científica já era, e é cada vez mais, produto de trabalho em equipe.

Após sua aposentadoria, em 1995 ainda permaneceu como permissionário por mais três anos no mesmo laboratório. Entretanto, sentia que sua presença se tornava dispensável, e que poderia contribuir em novo desafio.

Foi então, que recebeu o convite do psiquiatra Antônio Waldo Zuardi para trabalhar na Pós-Graduação em Saúde Mental do Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da FMRP. Devido a mudanças de critérios por parte da Capes, o perfil do curso deveria ser modificado, aumentando a ênfase na pesquisa experimental. A idéia o agradou por, inclusive, representar o reencontro com a motivação original de sua carreira. Também, para explorar as implicações clínicas dos conceitos que vinha elaborando sobre a fisiopatogenia do transtorno de pânico. Por problemas burocráticos, foi trabalhar, durante um curto período, na Universidade de Mogi das Cruzes, a convite do ex-professor de clínica médica Dalmo de Souza Amorim. Lá, exerceu a função de coordenador das disciplinas básicas dos cursos biológicos e da saúde. Acabou pedindo demissão.

Em 1999, reabriu-se a oportunidade de atuar na Psiquiatria da FMRP, agora apoiado por Bolsa de Pesquisa outorgada pela Fundação de Amparo ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da FMRP. O trabalho iniciou-se oficialmente em janeiro de 2000 e terminará em dezembro deste ano. Quanto à pesquisa, o fato mais relevante no grupo tem sido o treinamento de três jovens pesquisadores em estudos de neuroimagem estrutural e funcional, realizado graças a pós-doutorados realizados na Inglaterra e à colaboração com o Setor de Ciências da Imagem do HCFMRP.

Na pesquisa, iniciaram a exploração dos pacientes de pânico com a obtenção de imagens de ressonância magnética. O doutorando Ricardo Riyoiti Uchida, realizou dois estudos, um baseado em análise de imagens de ressonância magnética estrutural com volumetria manual, já publicado. O outro, com volumetria baseada no vóxel, que permite a segmentação automática de todo o cérebro. Os resultados preliminares foram divulgados no 8th World Congress of Biological Psychiatry, realizado em Viena, em 2005.

Para Graeff, os achados deste estudo podem ser relevantes para a compreensão da fisiopatologia do transtorno do pânico, complementando o quadro anteriormente delineado com base nas evidências colhidas em animais de laboratório. Os achados principais foram um aumento do volume de matéria cinzenta no tronco cerebral e na ínsula, além uma diminuição, na região anterior do giro cíngulo. O primeiro achado é compatível com o papel da MCPD no pânico. Já as anomalias na ínsula e no cíngulo anterior podem estar relacionadas com a detecção de informação interoceptiva proveniente do corpo, e sua tradução em sentimentos de apreensão. Isto é particularmente relevante, dado que os pacientes de pânico sobreestimam a estimulação interoceptiva e atribuem a ela uma interpretação catastrófica. Mais ainda, sabe-se que o objetivo da psicoterapia cognitivo-comportamental do transtorno de pânico é o de elevar a tolerância aos estímulos corporais perturbadores. Assim, a ínsula e o cíngulo anterior podem também participar da ação terapêutica da intervenção psicológica. Complementarmente, os medicamentos antipânico, sendo os mais utilizados os inibidores da recaptação de 5-HT, bloqueariam os ataques de pânico por intensificarem a ação inibidora da 5-HT na MCPD.

Para ele, o ciclo está se fechando e a missão na Psiquiatria chegando ao fim. “Tenho plena confiança de que, como nos casos anteriores, o impulso que dei à pesquisa não se perderá após minha saída” “Depois de mim, o dilúvio. até agora não fez o meu estilo”, sentencia.

Graeff acredita que sua geração deu um salto importante que foi inserir o Brasil no grupo das nações que produzem artigos científicos de qualidade internacional. Porém, pensa que o país falhou na inovação tecnológica e no desenvolvimento. Esta deficiência não deve ser imputada aos pesquisadores, porém à falta de um projeto nacional de desenvolvimento educacional e empresarial. Onde este existiu, que foi na pós-graduação, a resposta da comunidade científica se fez sentir. De qualquer modo, configura-se o atual desafio de fomentar a inovação e o desenvolvimento tecnológico para acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico, gerar empregos, aumentar a qualidade de vida da população e atenuar desigualdades regionais e de categoria social.

Porém, há que apontar riscos no exagero de uma visão por demais utilitarista da pesquisa científica. A fonte da inovação é a criação científica original, muitas vezes distanciada da aplicação imediata. Não se pode confundir cientista ” que descobre fatos novos, formula hipóteses originais e as verifica experimentalmente ” com operadores de máquinas complexas que produzem fileiras de dados de significado incerto. Só os primeiros serão capazes de interpretá-los e, sobretudo, de formarem a próxima geração de pesquisadores. Desprezá-los é matar a galinha da fábula, para ficar, temporariamente, com os ovos de ouro.

Ivan Izquierdo
um cientista do mundo
Claudia Jurberg

Por que somos incapazes de lembrar de algo quando a memória teima em falhar? Ou por que quando queremos esquecer de fatos indesejados os mesmos teimam em nos perturbar?

Os estudos sobre a memória são parte da biografia de Ivan Izquierdo, um argentino que adotou o Brasil por opção.

Ivan Izquierdo nasceu em Buenos Aires, em 1937. Filho de pai de velha família argentina, de origem catalã e mãe croata, Izquierdo pode ser considerado um cidadão do mundo, pois sente-se em casa, como ele mesmo confessa, tanto na Espanha como na Croácia, no Brasil e na Argentina. Além dessas sensações pessoais, sua produção científica é reconhecida mundialmente.

Primogênito de uma família de dois filhos, formou-se em Medicina influenciado por um tio médico. Doutor pela Universidade de Buenos Aires, tornou-se professor titular na Universidade de Córdoba. A escolha pelo Brasil aconteceu em 1973 e está envolta tanto em fatores externos como a ditadura militar na Argentina e as ameaças de morte, como em fatores amorosos, a esposa Ivone, uma brasileira, cujos pais os abrigaram em território nacional durante vários meses. Izquierdo relembra que a idéia inicial era ficar no país por pouco tempo, antes de rumar para os Estados Unidos, mas problemas de saúde familiares acabaram por contribuir para que fincassem raízes no país.

Hoje, a família Izquierdo reúne a esposa com quem vive desde 1963, os filhos Juan e Eduardo, as duas noras Luciana e Daniela e os netos Francisco, Felipe, Maria Eduarda e Maurício. “Todos muito unidos”, como orgulhosamente diz!!

No Brasil, apesar da ditadura também o amedrontar, morou em São Paulo durante os primeiros anos, tendo fixado residência no Rio Grande do Sul, em 1978. Desde entã e com a “abertura lenta e gradual” para a democracia, optou por se estruturar no país. Foi contratado, inicialmente, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, mais recentemente, pela PUCRS, onde desenvolve até os dias atuais pesquisas sobre os mecanismos de memória – as estruturas cerebrais que fazem, conservam e evocam as memórias – e sobre os mecanismos bioquímicos destes processos.

Dos tempos de imigração relembra-se das maiores dificuldades de adaptação: a língua, a discriminação e a falta de uma infra-estrutura para se fazer ciência de qualidade. Transcorridos mais de 30 anos de sua imigração, ainda hoje lhe incomoda a discriminação. E ao longo desses anos, a ausência de política científica nacional, por um lado; e o apoio governamental e da imprensa a temas oportunísticos, por outro, ainda lhe causam certo desconforto.

Alguns dos resultados de sua trajetória pelos intrincados segredos da memória são a identificação de várias estruturas cerebrais, a fundamental descoberta dos mecanismos moleculares da consolidação da memória de curta e da de longa duração; a descoberta dos principais mecanismos moleculares da evocação e da extinção; e a mais recente descoberta (2005) de que os sistemas e mecanismos utilizados pelo cérebro ao aprender algo pela segunda vez são diferentes daqueles usados quando se aprende pela primeira vez. Estas conquistas credenciam-no, hoje, como um dos cientistas mais citados em todas as ciências no mundo. E, além dessas atividades relacionadas ao mundo científico, ainda escreve ensaios, contos e artigos sobre política e divulgação científica.

Para ele, o estudo da memória é um dos grandes temas da humanidade. Envolve ou encerra dois grandes mistérios intrínsecos. Um, é que somos literalmente aquilo que lembramos. Nossa individualidade radica em nossa memória. A outra, é que a memória envolve duas transformações: a da realidade num conjunto de códigos cerebrais, na hora de adquirí-la, e a transformação de elementos desses códigos numa nova versão da realidade, não igual à original, na hora de evocá-la. O trabalho contínuo sobre a memória e o amadurecimento neste campo contribuíram para mais de 550 publicações ao longo da carreira científica. O ano de 2005 marcou um recorde de publicações de seu grupo. Foram mais de 30 papers.

Izquierdo revela que os prazeres de fazer ciência consistem na possibilidade da descoberta, da aventura, da invasão do desconhecido. E mais especificamente no Brasil, para ele, um prazer adicional está intimamente relacionado a fato de que cada nova empreitada faz diferença no meio. As conquistas carregam em seu bojo a necessidade de ultrapassar dificuldades, lutando contra a ignorância, as irregularidades de financiamento, o desconhecimento por parte do público e das autoridades sobre a importância de cada estudo.

Na sua opinião, a educação científica no Brasil deveria começar pela escola primária, conscientizando toda a população desde bem cedo de que sem ciência não há tecnologia, sem tecnologia não há economia, e sem economia não há país. E para os jovens cientistas, sugere que, em primeiro lugar, devem escolher um bom lugar de trabalho. Segundo, devem ir atrás de um orientador que seja sólido e não sedutor: cuidado com estes últimos, ele alerta. Terceiro, é fundamental, ir atrás de um tema grande, não de um tema menor. “No Brasil, temos tanto direito de trabalhar nos grandes temas como em qualquer outro país”.

Ele não tem grandes sonhos em relação às neurociências nem à outra ciência em especial. Mas acredita que saberemos cada vez mais sobre todas as coisas, sem dúvida. E revela seus sonhos em relação à humanidade: “espero que saibamos canalizar as inúmeras transformações que causamos rumo a uma vida mais longa, mais pacífica e de melhor qualidade. E que, para chegar a isso, paremos de destruir o planeta e nossas civilizações.”

Carlos Eduardo Guinle Rocha Miranda
em busca de novos modelos
Claudia Jurberg

A cada ano que se inicia, esperanças se renovam e, como não poderia ser diferente, no ano de 1934, exatamente no primeiro dia, no Rio de Janeiro, as famílias Rocha Miranda e Guinle experimentavam, além da chegada de mais um ano, a alegria com o nascimento de um novo membro. Carlos Eduardo Guinle da Rocha Miranda nasceu numa família que lhe deu o privilégio de uma infância tranqüila, como ele mesmo define. Edgar Honold da Rocha Miranda e Evangelina Guinle da Rocha Miranda puderam oferecer boas escolas aos filhos, assim como nunca deixaram faltar incentivos para a busca das melhores oportunidades.

Símbolo dessa visão, aos 12 anos, Carlos Eduardo Rocha Miranda, até então matriculado no Colégio Padre Antônio Vieira, embarcava rumo à região da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, por não gostar do formato escolar brasileiro, com excesso de disciplinas. Lá, foi interno durante cinco anos num colégio americano que, ao contrário dos nacionais, oferecia, a cada semestre, apenas quatro ou cinco disciplinas. Ele considera sua formação muito devedora à temporada americana, pois, além da nova língua, o colégio o incentivou ao trabalho experimental em laboratório.

Nas férias escolares, aproveitava o tempo para rever os parentes e os amigos. Ao terminar o High School, chegou a cogitar de sua permanência nos Estados Unidos, pois havia sido aceito para cursar agronomia na Cornell University, mas… … não se sentindo maduro ainda para escolher a profissão, resolveu voltar à pátria-mãe, a fim de administrar uma fazenda de propriedade da família, em São Paulo. Nessa temporada no campo, pôde confirmar /in loco/ que faltava algo mais dentro de suas ambições: o trabalho no campo não oferecia, naquela época, oportunidades para saciar sua curiosidade científica. Embora fosse apreciador do acordeom e da cerveja nas festas caipiras, retornou ao Rio de Janeiro em busca de uma profissão.

Dessa época, concluiu que teria maior vocação para a Biologia, mas seus consultores do meio acadêmico aconselharam-no a cursar Medicina, o que lhe daria mais base para a pesquisa biomédica. Do curso na Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil, concluído em 1958, lembra-se com muito carinho de mestres como Carlos Chagas Filho, Lauro Solero, Bruno Alípio Lobo, Paulo de Góes, Amadeu Cury, entre tantos outros.

Logo no início do curso de Medicina, foi encaminhado ao Instituto de Biofísica para fazer estágio com a professora Denise Albe-Fessard, do /Institut Marey/, que retornava ao Brasil para continuar seus estudos sobre o peixe elétrico (Electrophorus electricus) com Carlos Chagas Filho Estes cientistas foram influências determinantes na sua opção pela neurobiologia, em particular pelo estudo de células isoladas com microeletródios.

A pergunta na época era de como se dava a sincronização da descarga elétrica, que produzia trens de dois a três milésimos de segundo com centenas de volts, a partir de milhares de eletroplacas com descargas individuais de milésimos do volt. Sua satisfação com o ambiente no Instituto de Biofísica levaram-no a atrair Eduardo Oswaldo Cruz, seu velho amigo e neto de Oswaldo Cruz, que trabalhava no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina. Iniciava-se, assim, uma parceria que recebeu o codinome de /Eduardo brothers/ e que, com Albe-Fessard, deram início ao Laboratório de Neurobiologia de Mamíferos da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Influenciados pelas linhas de pesquisa de Albe- Fessard em Paris, os primeiros estudos do Laboratório aplicavam métodos morfo-funcionais ao estudo de centros subcorticais do gato. Na busca de novos modelos, contudo, após a conclusão de sua tese de Doutor em Medicina sobre a Eletrofisiologia do Núcleo Caudato, em 1961, e um estágio de dois anos no National Institutes of Health, Rocha Miranda, ao retornar ao Brasil, e seu companheiro Eduardo Oswaldo Cruz adotaram o Didelphis marsupialis, o gambá, como modelo experimental, por razões filo e ontogenéticas.

Entre outras vantagens, o gambá, com uma gestação de 13,5 dias, permite a manipulação experimental precoce, tendo em vista que grande parte do seu desenvolvimento se dá fora do útero. Seguiram-se, então, uma série de trabalhos que culminaram com a publicação, em 1968, com Eduardo Oswaldo Cruz, de um Atlas citoarquitetônico em coordenadas extereotáxicas, para o acesso a núcleos subcorticais desse animal. Esse Atlas veio a ser utilizado por um grande número de trabalhos de seus alunos sobre a organização morfo-funcional do sistema visual do adulto e do imaturo.

Ao final dos anos sessenta, voltou para os Estados Unidos, agora aportando em Harvard, com a intenção de trabalhar no modelo desenvolvido no Brasil. Nesse período de três anos, o seu encantamento pela psicologia experimental levou-o a trabalhar num primata, a macaca mulata.

Em Harvard, juntou-se ao grupo liderado por Charles G. Gross, que reunia um físico e um psicólogo experimental, ambos com vivência em estudos do lobo temporal, região cortical até então obscura para a ciência. Nessa época, as únicas certezas sobre o lobo temporal eram sua suma importância para o aprendizado visual. O brasileiro veio acrescentar a este grupo sua experiência em citoarquitetonia e neurofisiologia.

A estada em Harvard foi envolta numa feliz coincidência de reunir este grupo com competências distintas. Essa tríade deu lugar a uma nova hipótese funcional sobre o lobo temporal, que representa, segundo ele conta, a sua principal contribuição em neurociência: o estudo das respostas de células isoladas do lobo temporal com microeletródios a estímulos visuais complexos.

Ao iniciar este trabalho, o grupo havia adotado desenho experimental semelhante ao de Hubel &commerce; Wiesel, analisando respostas a estímulos simples, para revelar o processamento dos estágios iniciais da informação visual no córtex cerebral. De fato, as células do lobo temporal exibiam campos receptores aos estímulos visuais e eram muito maiores do que os dos estágios anteriores e sempre incluíam a fóvea. Mas muitas das células davam respostas fracas aos estímulos convencionais, bordas, fendas, barras etc., apesar de serem testadas ao longo de várias horas

Por acaso, numa das sessões, durante as projeções com estímulos que faziam numa tela para observar a resposta de uma célula, Rocha Miranda invadiu a tela com sua mão formando uma imagem semelhante à postura das mãos dos macacos. Foi o movimento necessário para que a célula sob estudo, até então gerando poucos impulsos aos estímulos geométricos simples, respondesse com um trem de impulsos de alta freqüência.

Estudos subseqüentes vieram confirmar que os estímulos ótimos para as células desse nível de processamento seriam antes estímulos com significado biológico para o animal, como mãos, faces e outros e não os geométricos dos primeiros estágios. Este fruto do acaso, sabiamente aproveitado, rendeu ao grupo um grande número de artigos e à neurociência uma nova visão do processamento da informação visual em estágios avançados.

Posteriormente, Gross foi convidado para montar seu laboratório em Princeton, mas apesar de todos os fatores favoráveis, Rocha Miranda optou por desligar-se do grupo e voltar ao Brasil, com o intuito de produzir ciência em sua pátria.

Assim, voltou para a UFRJ, quando conseguiu trazer, graças a recursos da Finep conquistados pelo outro Eduardo, o primeiro computador instalado no Brasil para estudos on-line e real time. O equipamento foi montado no Instituto de Biofísica onde serviu a laboratórios de vários departamentos por 18 anos. Nessa época, pôde montar seu laboratório de Neurobiologia II, onde teve a oportunidade de continuar a formação de um grupo de pessoas, como ele mesmo sentencia, maravilhoso. Desse grupo faziam parte, entre outros, Roberto Lent, seu primeiro pós-graduando, Rafael Linden, Eliane Volchan, Rosália Mendez-Otero, Luiz Gawryszewski, Leny Cavalcante, Ary S. Ramoa e Elisa Carvalho Dias.

Hoje, Rocha Miranda é um dos diretores da Academia Brasileira de Ciências (ABC), e desde 1996, tem um projeto arrojado para levar adiante: tornar acessível os benefícios da ciência a pessoas portadoras de deficiências (www.integrando.org.br http://www.integrando.org.br ). O projeto, que conta com o apoio da ABC, tem como filosofia oferecer moradias assistidas a pessoas com necessidades especiais, estabelecendo diretrizes para a sua inclusão social, que vão desde o aprendizado de hábitos quotidianos até o engajamento profissional.

Atualmente, já existem moradias assistidas parceiras em Friburgo, Niterói, Rio de Janeiro e São Paulo. O projeto conta com parcerias nacionais e estrangeiras americanas e vem dando grande ênfase à formação de profissionais da área de saúde para atuar nesse setor.

Diante dessa riqueza existencial, Rocha Miranda oferece um conselho aos iniciantes: escolham bem seus orientadores, de preferência aqueles que demonstrem maior criatividade. Em relação à comunidade científica, ele deseja que a sociedade e o governo venham a se sensibilizar pela importância do desenvolvimento de ciência e tecnologia em nosso país. E termina com a esperança que os cientistas estabeleçam períodos de recesso das “torres de marfim” e procurem formas para demonstrar à sociedade os benefícios que podem ser auferidos pela criação científica.




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