Resumo

Introdução: Abundantes evidências suportam a hipótese de que o processamento fonológico é o mecanismo central subjacente à aquisição da leitura, cujo prejuízo é o déficit central subjacente à dislexia do desenvolvimento (DD). Entretanto, a etiologia dos déficits fonológicos e sua especificidade linguística ainda é foco de intenso debate e pesquisa. Correlações positivas entre a aptidão musical (na ausência de treinamento musical) e habilidades linguísticas têm sido encontradas para o processamento fonológico e para a leitura em crianças pré-escolares e em idade escolar. Investigamos as possiveis relações entre percepção musical e habilidades cognitivas não musicais em crianças falantes do português. Método:Quarenta e três crianças brasileiras (27 do sexo masculino e 16 do feminino) do segundo ano fundamental (idade média: 7 anos e 2 meses, SD: 4 meses)realizaram tarefas de consciência fonológica, discriminação fonêmica, memória de trabalho fonológica e visual, leitura-escrita e ritmo. Uma nova tarefa musical, a Transcrição de Sequências Musicais (TTSM), e inovadora porque estabelece uma experiência musical autêntica na execução do violão em sala de aula, foi especialmente desenvolvida para este estudo. A tarefa TTSM consiste de sequências de quatro sons obtidas a partir da combinação de apenas dois tipos de som: um no registro grave (som grosso), correspondente a um intervalo de quinta justa com as frequências fundamentais 110 Hz (A) e 165 Hz (E), e outro no registro agudo (som fino), correspondente a um intervalo de quarta justa com as frequências de 330 Hz (E) e 440 Hz (A). As crianças (nunca informadas que as sequências consistiam de quatro sons) representaram o som fino com um traço vertical "I" e o grosso com um "0". Resultados: Correlações parciais (controlando a idade) entre as tarefas cognitivo-linguísticas e a TTSM foram calculadas com o programa estatístico SPSS com limites de significância (duas caudas) corrigidos por um algoritmo de correção para achados falso-positivos (False Discovery Rate - FDR). O desempenho na tarefa TTSM correlacionou-se significantemente com a memória de trabalho verbal (r=.506, p<.01) e a discriminação fonêmica (r=.449, p<.01). Observamos pela primeira vez um interessante fenômeno a que chamamos de efeito Reverberação: quando uma criança registra mais sons do que realmente foram tocados. Obviamente o desempenho na TTSM apresentou correlação negativa com a ocorrência do efeito Reverberação (r=-.671, p<.0001). No subgrupo de participantes que exibiram pelo menos uma ocorrência de reverberação (n=22), a TTSM se correlacionou positivamente com a fluência (r=.625, p<.01) e a acurácia (r=.775, p<.0001) na leitura, com a escrita de palavras (r=.664, p<.01) e com a consciência fonológica (aliteração, r=.576, p<.01; rima, r=.669, p<.01), mas negativamente com a reverberação (r=.637, p<.01). A Reverberação se correlacionou negativamente com a acurácia na leitura (r=-.638, p<.01), aliteração (r=-.626, p<.01) e memória de trabalho visual (r=-.610, p<.01). Conclusão: O desempenho na TTSM associado ao efeito reverberação foram fortemente relacionados com as habiidades fonológicas, portanto provavelmente não específicas da fala, e com a leitura e escrita. A TTSM parece ter um bom potencial como ferramenta pedagógica para ajudar na identificação precoce de crianças em risco de DD e em programas de intervenção na prevenção de consequências clínicas, psicológicas e sociais da DD. Um promissor campo de pesquisa.